A MARVADA DA MELANCIA

             "A MARVADA DA MELANCIA"
Quando olhamos para o passado - e não faz tanto tempo assim, talvez 40 anos, um pouco mais - estamos falando de um mundo tão próximo e, ao mesmo tempo, tão distante de nós que, para nossa geração, pode parecer inacreditável. Hoje é um mundo perdido, imagens enevoadas presentes apenas nas brumas da memória. Mas efetivamente existiu.

Naquele tempo, os bombeiros dispunham de uma estrutura tão espartana que custa a crer que cumprissem tão árduas missões, movidos praticamente pela vontade de preservar vidas e patrimônio, em muitas situações contando apenas com a criatividade e a boa sorte para saírem com vida de tão perigosas situações

Enfrentava-se o fogo sem capa antichama, sem capacete com viseira protetora, sem a resistência a impactos, que só chegou com as novas tecnologias de tecidos especiais antichamas e o uso disseminado da fibra de carbono.

Nas ocorrências praticamente não se utilizava equipamentos de proteção individual - os EPIs - que assegurassem a incolumidade física e a saúde dos bombeiros. Era comum que mergulhassem em rios poluídos, em fossas, usando apenas shorts, fizessem a pesquisa bem sucedida, salvando vítimas ou devolvendo seus corpos para que as famílias pudessem pranteá-los como exige a cultura humana, desde os primórdios de sua marcha civilizatória.

Ao sair do rio - ou da fossa - era suficiente um banho de mangueira, álcool esfregado vigorosamente no corpo e um gole de cachaça, "pra matar os bichos".

Muitos bombeiros adquiriram, ao longo da vida, graves doenças respiratórias ou oftalmológicas, dermatites incuráveis ou outras doenças decorrentes do contato direto de seus corpos com ambientes e substâncias infectantes. Mas, à época, em uma visão fatalista e de orgulho profissional, considerava-se o risco normal, aceitável para quem quisesse ser bombeiro. Outros, tornaram-se dependentes de álcool, como preito de suas vidas ao desejo de salvar outras vidas.

Delineado esse quadro, considerava-se normal, àquela época, ter guardada no armário, disfarçadamente, uma garrafa de aguardente para uso nessas situações. Ou para tomar um aperitivo antes das refeições.

Eis que chega no quartel um tenente recém-transferido da Corregedoria. Reuniu a prontidão e avisou:

- Quartel que eu comando não tem cachaça!

Ato contínuo, promoveu rigorosa revista de armário e apreendeu, para desolação dos "antigões", umas dez garrafas da "marvada". O ralo foi o destino, enquanto os abatidos proprietários olhavam tristemente para o líquido, precioso a seus olhos, escorrer para as profundezas da rede de esgoto.

Acabada a revista, os "antigões" se reuniram no fundo do quartel e chamaram o Roosevelt, o mais moderno dentre eles:

-Oh, recruta, vá até a cidade e reponha o estoque.

O neófito se assustou:

- Mas como eu faço Senhores? Se o tenente me pega, eu estou na roça!

Delicadamente, eles o apoiaram:

- Problema seu!

Ele foi à cidade, pensativo. Súbito, uma idéia iluminou sua jovem mente. Depois de retirar o jantar no Serviço de Subsistência, parou no mercadão e comprou seis melancias. O dono da banca, honrado em ser fornecedor do Bombeiro ("- admiro muito. vocês", ele disse) ainda fez um desconto. O jovem bombeiro escavou-as com cuidado, introduziu em cada peça uma garrafa e tornou a tampar as frutas. Ficou imperceptível. Acomodou-as sobre palha em caixas de madeira, com a tampa para baixo. E escondeu as laranjas, fornecidas pela Subsistência, na cabine da camionete.

Ao chegar ao quartel, quem o aguardava? Claro, o tenente. Que, de imediato, inspecionou a camionete de cabo a rabo, procurando bebida. Não encontrou e ainda se mostrou feliz, permitindo-se uma brincadeira, em tom informal, com o apavorado recruta:

- Que bom, mandaram melancia pra sobremesa? Eu adoro melancia - ele disse.

- S...S...Sim, Senhor! - Foi tudo o que o Roosevelt conseguiu balbuciar.

E a vida seguiu. Ocorre que um bombeiro daquela prontidão, tinha baixíssima resistência ao álcool. Colocasse uma grama de cachaça em circulação no sangue e já se alterava.

Mas um dia ele não resistiu e tomou um martelinho. E entrou em forma.

O tenente olhou, olhou e perguntou:

- Epaminondas, você está oscilando?

- Não, seu Tenente. É efeito do vento!

Três anos depois, o tenente foi promovido a capitão e deixou o comando do posto. Nesses três anos, tornou-se muito respeitado e querido por seus subordinados, pois era bravo e era duro, isso era.

Mas era corajoso, trabalhador, justo e comandava pelo exemplo. Se estivessem certos, nunca hesitava em defendê-los.

E se interessava verdadeiramente pelo bem estar de seus homens e de seus familiares, pois se um filho de um bombeiro precisasse ser hospitalizado, ou de uma vaga na escola, o tenente era o primeiro a ir a campo para batalhar pelo interesse da criança.

Todos ficaram felizes com sua promoção, mas tristes com a perda daqueles que reconheciam como um grande comandante.

O agora capitão ficou muito comovido e até chorou quando o homenagearam na despedida.

Durante a confraternização que se seguiu à cerimônia, todos foram até ele desejar-lhe boa sorte na nova jornada.

Mas ele ainda não estava satisfeito. E chamou o Roosevelt de canto:

- Roosevelt, você hoje é meu amigo. Agora que passou, eu quero que você me conte, porque essa dúvida me consome. Na moral, como é que vocês conseguiram trazer cachaça prá dentro do posto sem que eu percebesse? Foi você, não foi? 

E o Roosevelt, que já não era mais recruta, e também não era besta, disfarçou, não disse nem que sim, nem que não:

- Comandante, a culpa é da "marvada" da melancia!

                   "Ontem Hoje e Sempre"

Autor do texto: Cel PM Luiz Pesce de Arruda  
Autor da Ilustração: Cel PM Nilson Carletti.
SP, 22/06/2023-17:00h

Publicado: Revista dos Bombeiros - ANABOM - Edição 12 abr/mais/jun - 2023

Pesquisador: Sgt PM Eduardo Marques de Magalhães 

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