VOCÊ GOSTA DE SER BOMBEIRO?


"A sua esperança em nós, e a nossa em Deus”
Quando você ler esta história, não há como não se lembrar de “O Pastor”, de Frederick Forsyth. Realmente esta crônica se inspirou naquela obra. Mas os mistérios contidos em uma se repetem na outra.

Por isso o registro. Afinal, pilotos de aeronave em missão de combate (como em “O Pastor”) e bombeiros têm muito em comum: ambos têm sua vida por um fio, em muitos momentos. Ambos acreditam que, por vezes, não há mais esperança. Mas ambos encontram na fé o seu esteio, quando não há mais nada em que se escorar. E fatos inexplicáveis, ligando mundos e personagens de dimensões diferentes, fazem com que os pilotos – e os bombeiros – acreditem que as gerações se sucedem, mas os que partiram continuam cuidando dos que ficaram. É difícil compreender, por vezes é difícil verbalizar. Mas quem viveu a experiência - e muitos viveram, embora poucos comentem - tem certeza de que jamais estamos sozinhos.

O caso do Ferreira foi mais ou menos assim. Naquele feriado prolongado, a prontidão transcorria calma. Nenhuma chamada de emergência, o que era bastante incomum. Apesar disso, como todo bombeiro experiente sabe, somente quando chegasse a rendição, pela manhã, ao final do turno, seria possível relaxar e dizer que o serviço transcorreu sem novidades.
Mesmo naqueles momentos de quietude e aparente tranquilidade, a tensão nunca abandonava a prontidão.

Madrugada úmida e e gelada, o alarme soou estridente. Corrida de incêndio. As equipes, despertas e em momentos já embarcadas, iam se equipando em movimento, rumo ao desconhecido. A central, em contato via rádio com a guarnição, trazia frações de informação a cada vez. Estas eram retransmitidas de boca em boca . Fogo em fábrica. De grandes proporções. Fábrica de pneus. Vítimas anotadas pelo local.

Pelas ruas desertas da cidade adormecida, molhadas pelo sereno da noite, a guarnição do auto bomba visualizava a grande mancha vermelha de luz, emitida pela viatura, que percorria repetidamente o chão, varrendo o percurso como um farol em mar escuro. Vez por outra, um bar aberto, os clientes acompanhando com o olhar, respeitosamente, sem nada dizer, o trem de socorro que se deslocava veloz, o Auto Comando à frente e, na sequência, as viaturas de combate a incêndio.

O Ferreira era o mais novato, o “recruta”, da guarnição. A uma semana de completar vinte e um anos, desde criança nunca pensara em fazer outra coisa na vida que não fosse ser bombeiro. Tentou três vezes superar o difícil processo seletivo. No segundo concurso, passou em tudo mas foi reprovado na natação. Ganhando pouco como motofretista, tomou uma decisão radical: deixou de almoçar durante meses para, com a economia, pagar uma academia de natação. Na terceira tentativa, foi aprovado e, em seguida, classificado como Soldado de 2ª Classe (aluno) da Escola Superior de Bombeiros, a ESB, um imponente complexo de ensino situado em Franco da Rocha. Concluída sua formação, recém chegado da ESB, esta era sua segunda prontidão operacional. E sua primeira corrida para um incêndio.

Quando sua viatura foi se aproximando do sinistro, vendo ao longe as dimensões das labaredas e os grossos rolos de fumaça, ocorreu ao Ferreira uma pergunta recorrente a todo jovem bombeiro:

- O que eu estou fazendo aqui?

Como flashes, passavam pela sua mente sentimentos ambivalentes: o orgulho do seu pai, a alegria festiva de seus irmãos quando lhes comunicou o resultado de seu concurso.
Não havia comentado com ninguém em sua casa que tentava ingressar na ESB. Sua mãe ficou orgulhosa, sim, mas não exultante. Uma sombra de preocupação toldou o seu sorriso. Mãe não quer, jamais, ver o filho em perigo e ela, como toda mãe, só fez um comentário:

- Filho, é tão perigoso!

Os demais bombeiros, todos mais experientes, por vezes apertavam o braço do Ferreira sem dizer nada. Olhavam com confiança e, sem palavras, lembravam que um dia também foram novatos. E, o mais importante: estavam juntos.

- Estamos aqui, confie. Essa era a mensagem não dita.

No local, uma multidão se acotovelava, enquanto as guarnições de radiopatrulha da Polícia Militar isolavam a área do melhor modo possível, naquelas circunstâncias. O tenente orientava suas guarnições a fazer a linha se mover, afastando a multidão para uma distância segura. A curiosidade fazia com que os mais afoitos tentassem romper a linha para ver mais de perto o que acontecia.
Situação de alto risco, pois até aquele momento não se sabia ao certo que produtos, além de pneus, poderiam estar estocados na fábrica.
O tenente do Bombeiro gritou à multidão:

- Pessoal, todo mundo pra longe. Vão pra praça, isso pode explodir!.

A multidão se concentrou na pracinha, a uma distância mais segura.
Localizados os hidrantes, constatou-se que tinham água pressurizada. As linhas de combate a incêndio foram montadas. As guarnições começaram a adentrar o local em chamas. O número de bombeiros ainda era muito reduzido. Por certo, outras guarnições, de postos mais distantes, estavam a caminho.

Mas ainda não havia chegado.
Ia entrar. Ferreira, como os demais bombeiros, conduzindo seu equipamento autônomo de proteção respiratória.
Em meio à escuridão, Ferreira tentava concentrar- se e lembrar-se das lições da ESB:
O equipamento é limitado pela quantidade de ar existente no cilindro de ar comprimido. Respirar calmamente, para poupar oxigênio.
Manter a calma e checar constantemente o manômetro, para verificar a pressão do ar existente no cilindro, para avaliar o tempo de uso que lhe resta.
E deixar o local em segurança antes que o ar do cilindro se esgote.

O local estava totalmente às escuras. Não se enxergava um palmo à frente. O calor era insuportável. Avançando em meios às pilhas de pneus em chamas, Ferreira observou pessoas mortas, vítimas de sufocação. Todas aparentavam estar na posição de pugilistas, na contração muscular causada pela ação do fogo.

Naquele labirinto, a missão era tentar debelar as chamas e remover os pneus ainda não afetados pelo fogo. A silhueta do tenente, vez ou outra, aparecia recortada na escuridão contra o fundo em chamas.
Ferreira estava próximo ao sargento, que orientou:

- Vamos escorar os pneus!

O objetivo era evitar que desabassem sobre os bombeiros.
Utilizando caibros desabados da própria construção, Ferreira somou-se aos demais companheiros na tarefa de escorar as pilhas.
O tenente gritou:

- Sai, sai que está caindo!

O teto ruiu com estrondo. Por um instante, Ferreira não sabia exatamente onde estava. Agora, não tinha mais contato – visual ou por rádio, com o tenente, com o sargento ou com os demais companheiros. Estariam a salvo? Ou o desabamento os atingiu?
Ao seu lado, permaneciam mais dois bombeiros, protegidos debaixo das escoras. Por um verdadeiro milagre (foi o que Ferreira pensou naquela fração de segundo) o desabamento não cortou a mangueira. o tempo parecia não passar. Ao seu lado, um companheiro mais experiente pedia por seu HT que os companheiros, situados na rua, não deixassem faltar água nessa linha. Sem água, seriam consumidos juntamente com os pneus em chamas.

Em uma oração silenciosa, todos pediam que a água não acabasse.
Mas instantes depois – o tempo é uma referência que se perde nessa situação - o fluxo de água começou a ficar irregular e a diminuir. A água acabou.
Ferreira respirava apressadamente. O companheiro mais experiente tentava acalmá-lo:

- Respira devagar, menino, senão seu ar acaba mais rápido.

Não havia como permanecer ali por mais tempo:

- Todo mundo pra fora, temos que sair!

Um a um, os bombeiros foram deixando o abrigo das escoras e começaram a caminhar, em busca da saída.
O alerta sonoro avisou que o ar estava terminando. Antes que sufocasse, Ferreira retirou o respirador autônomo.

- Seja o que Deus quiser.

A fumaça queimava as vistas e os pulmões do jovem bombeiro. Desorientado, ele não via a saída, nem sabia onde estavam seus companheiros. Não havia medo nem dor. Apenas lassidão e uma paz imensa tomou conta dele.

- Vou morrer – pensou.

Nisso, outro bombeiro, vindo do interior do prédio, se aproximou dele. Era louro. Tenente.
- Como esse tenente pode estar aqui no meio da fumaça sem respirador? – pensou Ferreira.
O tenente apertou seu ombro. A bondade, energia e a segurança que o tenente lhe trouxeram deu a ele a certeza de que iria sobreviver.

- Vem comigo, bombeiro. Vou tirar você daqui.

Em um efeito físico que jamais lhe descreveram na ESB, onde o tenente pisava se moldava uma pegada luminosa, formando um caminho, como luzes de emergência em um corredor de avião.ou de um cinema. Ferreira seguiu o rastro de luz.
Mais alguns passos e o tenente mostrou-lhe a saída.

- Sai agora e se cuida.

Quando deixava o edifício em chamas, Ferreira ainda perguntou:

- Tenente, o Senhor não vem?

O tenente sorriu:

A missão nunca acaba.
E completou:

- Você gosta de ser bombeiro? Então vamos trabalhar! E voltou a adentrar no prédio.

Ferreira desmaiou nos braços de seus companheiros. Acordou no Hospital. Surpreendentemente seus pulmões e seus olhos não apresentavam danos, apenas uma irritação que logo passou.
Aos oficiais e praças que o visitavam, ele relatou que um tenente louro salvara sua vida.
Todos demonstravam um certo constrangimento. O recruta estava delirando. Afinal, o único tenente que estivera no local, até Ferreira sair dos escombros, era moreno.
A opinião era unânime:

- Você se desligou do time, voltamos para te resgatar mais você havia sumido.

O tenente foi muito claro:

- Achamos que você havia caído em algum poço de elevador. Seria uma tragédia, mas - sinto te dizer - ninguém acreditou que você fosse sair com vida daquele inferno.

No dia em que compareceu ao Comando do Corpo de Bombeiros para receber sua Láurea do Mérito Pessoal em quinto grau – a primeira em sua carreira, acompanhado de seus pais e irmãos, Ferreira viu uma foto esmaecida, em preto e branco na parede:

- Sargento! – Ferreira chamou seu comandante imediato, o sargento Lucena, bombeiro com vinte e oito anos de experiência.

- Sargento, o tenente que me salvou foi esse aqui da foto. Eu tenho certeza! Será que o Senhor pode me apresentar a ele?

Os olhos do sargento Lucena se encheram de lágrimas:
- Isso é impossível, meu filho. Esse é o tenente Antônio Righini de Moura, morto em uma explosão de caldeira. Veja a data.

- 19 de julho de 1.973? Mas era ele, eu tenho certeza! – Ferreira ficou lívido. Lágrimas incontidas correram por seu rosto.

- Ele desapareceu há mais de 30 anos. Estive com ele no incêndio do Andraus. Muito cuidadoso com a tropa. Vivia perguntando se a gente queria ser bombeiro. Quando a gente respondia que sim, ele sorria e dizia: - então vamos trabalhar. 

Nesse dia de julho, ele e sua guarnição conseguiram retirar sessenta funcionários de uma empresa de embalagens, quando houve uma explosão da caldeira. Foram gases... Eles não tiveram nenhuma chance. Mas...se você diz...você não iria inventar isso ....não sei se a sua percepção estava alterada pela fumaça...

O sargento Lucena olhou pela janela do edifício, os tons de verde e azul da serra da Cantareira recortados ao longe. E concluiu:

- Do pouco que aprendi, nesses quase trinta anos de serviço, uma coisa é certa: nossa vida de bombeiro tem muitos mistérios...

(Texto para a Revista do Bombeiro da ANABOM)

São Paulo, 27/12/2022 – 112.° Aniversário de criação do Sistema de Ensino da Polícia Militar

Pesquisador: Sgt Eduardo Marques de Magalhães 

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